Texto de apresentação, SNBA, Lisboa, julho 2020

“Anaxágoras e Empedocles dizem que [as plantas] são movidas pelo desejo, e afirmam que são dotadas de sensibilidade e experimentam tristeza e alegria.”

Pseudo-Aristote, Des plantes, I, 1, 815 a 15, in Jean-Paul Dumont, Les Présocratiques, Ed. Gallimard, Paris, 1988, p.669.

Para Jérôme, Sunyoung e Francisco

Os 28 desenhos apresentados durante a exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, em julho de 2020, foram realizados em duas residências no Centro de investigação artística Hangar, na mesma cidade, em agosto de 2018 e junho-julho de 2019.
Feitos a carvão vegetal sobre tela de algodão, cada um mede cerca de 150 x 80 cm.
Alguns podem também conter pigmentos de óxido de zinco misturados com um aglutinante acrílico.
As suas proporções, definidas pelas dimensões da mesa em que estava a trabalhar, referem-se às do corpo humano.
Suspensos na vertical sobre as paredes do espaço de exposição, apresentam-se numa espécie de face a face com o espectador, no interior de um dispositivo de espelhos.

O que me impressionou em Lisboa em 2018 foram as árvores* que encontrei cerca de quinze anos antes no Brasil, quando recebi uma bolsa de estudo como parte de minha tese de doutoramento para ir à Escola de Belas Artes de Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais).
Fotografadas no Jardim da Estrela ou na Praça do Príncipe Real, as árvores pontuam os nossos percursos na cidade e motivam os nossos passeios.
Esta memória do Brasil reativada em Portugal provocou um desdobramento de gestos, cujos desenhos são a marca.
Realizados num suporte previamente humedecido, os desenhos são em parte absorvidos pela tela que exprime o carvão que ela liberta como um resíduo à superfície.

Reagindo à maneira de uma pele que revela o que esconde ou protege, num movimento de refluxo, como o sangue que tinge o rosto, a tela tem a marca da passagem da matéria que a atravessa: a água ou a madeira calcinada (carvão).
Resíduo da própria árvore, associado ao fogo, o carvão envolve os meandros das suas dobras e sublinha o seu carácter orgânico: ao fazê-lo, segue o fio das suas metamorfoses.
Trabalhados em telas sobrepostas, arrancadas sucessivamente a fim de as separar, como tantos estratos na espessura do tempo, os desenhos conferem-se à memória da experiência da travessia da cidade e do encontro com as árvores, em Lisboa, mas também no Brasil.

Este movimento retrospectivo reativo é uma memória escondida que não nos pertence, mas que nos atravessa e nos abre a tirar uma possibilidade de futuro.
Acompanha-se de uma folhagem de planos que nos permitem trabalhar na espessura da imagem, de forma a procurar o que está sempre por baixo, por detrás da imagem, na sombra da própria tela que se levanta num gesto de arranque.
Este momento de ruptura assemelha-se a uma brecha de tempo que se abre, através deste arranque, à expressão de uma alteridade: à « escuridão secreta do leite » diria Paul Valéry.
Fazendo aparecer o outro da imagem, os desenhos geram uma figura à implantação do corpo do artista no trabalho e, ao fazê-lo, desenham uma espécie de retrato.

Revelando em negativo a impressão deste corpo que se ausenta, destaca-se do seu suporte (a tela de algodão) como se se desfizesse do seu envelope, deixam espaço ao vazio que propõem ao espectador para tirar ocupar.
Numa espécie de face a face, este dispositivo cenográfico de espelhos devolve ao espectador o reflexo da sua própria imagem.

Christine Enrègle, fevereiro 2020

* Ficus Macrophylla.


%d blogueurs aiment cette page :